quinta-feira, 20 de setembro de 2012

E Não Vai Ter Happy Ending


Era uma segunda-feira ensolarada de um dia de inverno-quase-verão. Chata, custosa e angustiante, como qualquer segunda-feira. Porém, ainda menos esperançosa do que de costume – se é que isso é possível. Naquele dia, pela primeira vez nos últimos anos, um par de pernas acordou sozinho no quarto de casal do apartamento 91. Sem ter em quem roçar, sem ter com quem disputar espaço, sem ter nada para se entrelaçar, a não ser os lençóis brancos, já amarelados de suor. O outro travesseiro ainda jazia ali, com o formato da cabeça dela, guardando um fio do cabelo dela, impregnado pelo perfume dela. A cama, que outrora foi cenário de um amor rasgado e de constantes guerras territoriais, agora era um mar de solidão e calmaria. Era toda dele, como ele nunca havia desejado nessa vida. Para a escova de dentes azul, que tantas vezes encostou suas cerdas na parceira vermelha, só restou a companhia da Close Up, que tantas vezes foi motivo de briga – ele apertava bem no meio, enquanto ela apertava atrás do tubo.

Enfim, a presença era súdita da ausência.

Eu nunca entrei no apartamento 91. Nunca sequer vi o que tem lá dentro. Não sei se há carpete ou piso frio, se as paredes são brancas ou verdes, se a televisão da sala é de LCD, de led, de plasma ou de porra nenhuma. Apenas uma vez na vida cruzei o vizinho no elevador. Barba por fazer, camisa xadrez, óculos wayfarer, sneakers nos pés – um perfil que sutilmente me interessa, mas apenas um corpo. Sem nome, sem identidade, sem hobbies, sem horários. Porém, com um coração que mais apanha do que bate e com um sofrimento agudo estampado bem na entrada de seu lar, amargo lar. A intenção inicial era apenas irradiar felicidade: logo que se mudou para cá, colou, orgulhoso, um adesivo da silhueta de um casal de mãos dadas na porta. Ela com o coração no peito, ele com o coração no pau. Mas naquela segunda-feira, por algum motivo que eu desconheço, ela não merecia mais estar ali. A silhueta feminina foi arrancada a força, como se aquele gesto representasse, para todo o nono andar, que ela é safada, é vagabunda, não presta. Como o apedrejamento em praça pública de uma mulher adúltera no Oriente Médio. Hoje, na porta, só restam as marcas da cola, que nem o solvente deu conta de remover. Talvez um verniz caia bem. Mas no coração, ah, nesse daí não tem verniz que resolva. A cicatriz fica, a lembrança vem qualquer dia desses, a saudade assola no momento mais inoportuno.


Todo o nono andar torce pela volta dela. Um dia ela entrará por aquela porta de mala e cuia. Com olhar de quem pede clemência, largará tudo no chão e correrá apressada para se aconchegar nos braços abertos dele e recuperar o tempo perdido – afinal, as historietas que a gente lê quando é criança ensinam que, se ainda não deu certo, é porque não chegou ao fim. E o fim há de ser belo. Todo mundo tem o direito a um ‘felizes para sempre’. O universo reservou para mim uma alma gêmea, uma tampa de panela, um par complementar que me fará rir a toa, dançar o Bolero de Ravel ao sol poente, amar acordar cedo às segundas-feiras. Ou que talvez não venha. Que talvez já tenha morrido num acidente de carro, ou que talvez morra atropelado um dia antes de me conhecer. Que talvez chegue um dia depois do meu enfarto fulminante. Que talvez se apaixone pela minha colega de trabalho e tenha lindos filhos com ela, sem sequer saber da minha existência. Ou que simplesmente me veja de moletom, tênis e cabelo desgrenhado no mercadinho da esquina e me ache desleixada demais para qualquer envolvimento.

E aí, meus caros, não vai ter happy ending. O vestido de noiva estilo corselet e saia rodada não sairá do croqui. A lua de mel em Punta Cana e a casa de veraneio em Paraty ficarão pra uma próxima. Os planos de um cozinhar e o outro lavar a louça permanecerão somente no papel. A Lavínia e o Lorenzo morarão eternamente no universo dos sonhos. O desejo de me trancar num chalé durante um final de semana inteiro para transar, comer, transar, dormir e transar nunca será realizado. A fechadura do coração tatuado na panturrilha nunca encontrará a chave que o abre. E justo ali dentro, guardarei todo o meu amor, que tantos já recusaram e que certamente daria para alimentar a Somália inteira. E também uma pontinha de amargura. Por não ter escolhido a profissão certa, por não ter perdoado de verdade aquele deslize, por nunca ter abordado o vizinho do 91. E se o sapato para o meu pé descalço fosse ele?

Texto de: Bruna Grotti

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